MANIFESTO DA POESIA PAU-BRASIL
Por OSWALD DE ANDRADE
(18 de março de 1924)
Texto extraído do livro:
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & Modernismo brasileiro. Apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 21ª. edição. Rio de Janeiro: José Olimpio, 2022. 658 p. ISBN 978-85-5547-069-4 Ex. bibl. Antonio Miranda
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio de Janeiro é o acontecimentos religioso da raça. Pau-brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo.
Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério.
A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
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Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente.
Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de jóquei.
Odaliscas de Catumbi. Falar difícil.
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O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não
podemos deixar de ser doutos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
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A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós
maliciosos da sabedoria. La lianas da saudade universitária.
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Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram com borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, crítico, crítica, donas de casa tratando de cozinha. A Poesia para os poetas.
Alegria dos que não sabem e descobrem.
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Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de
tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese dever ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil o romance nascido da invenção. Ágil a poesia. A Poesia Pau-brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars: — Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
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Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das ideias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionárias de todos os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta — a luta pelo caminho. Dividimos. Poesia de importação. E a Poesia Pau-brasil, de exportação.
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Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instaurou-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não fosse lá mesmo não prestava. A interpretação do dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria reproduzir igualzinho... Veio pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas de cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado — o artista fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A Playela. E a ironia eslava compôs para a Playela. Stravinsky.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos — já havia o poeta parnasiano.
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Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1ª) a deformação através do Impressionismo, a fragmentação, o caos voluntario. De Cézanne a Mallarmé, Rodin e Debussy até agora; 2º.) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira de reconstrução geral. Poesia Pau-brasil.
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Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese.
O equilíbrio.
O acabamento de carrosserie.
A invenção.
Uma nova perspectiva.
Uma nova escala.
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Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-brasil.
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O trabalho contra o detalhe naturalista — pela síntese; contra a morbidez romântica — pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
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Uma nova perspectiva:
A outra, a de Paolo Ucello, criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ótica. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
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Uma outra escala.
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O reclama produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros. Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tiques de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de ideias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
a Poesia Pau-brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.
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Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo.
Ver com olhos livres.
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Temos a base dupla e presente — a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtora, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-brasil.
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Obuses de elevadores, cubos de arranha-céu e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade de um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-brasil.
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O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
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O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito.
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O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
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A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
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Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural.
Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
Bárbaros crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais.
Pau-brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-brasil.
OSWALD DE ANDRADE
Correio da Manhã, 18 de março de 1924
(In: Revista do Livro, n. 16, dezembro
de 1959. Rio de Janeiro: I.N.L.)
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